Manhã nublada mas com uma luminosidade soalheira geradora da dualidade entre a pertinência e o despropósito dos óculos escuros...opto pela pertinência (opto sempre!!) - se mais não puder guardar para mim, os meus olhos não os verão os demais...os quaisquer demais.
Vou a caminho de uma macabra e revivalista reunião feminina de lavores do século XVIII, sita na ala dos horrores do hospital pediátrico - o bloco operatório. Estou atrasada! Toca de enviar sms a avisar as colegas. Elas respondem...não vão!!! E só agora tomo conhecimento...agora que o quente e fofo dos lençóis já recuperou da impressão do peso do meu corpo. Corpo transportado pelo frio e duro assento do autocarro nesta manhã nublada mas...já sem aquela pontinha de luminosidade (mantenho os óculos!!!)
Vou ou não vou?!?!Peso os prós e os contras, os contras e os prós...isto em quilometragem decrescente para a paragem destino de todos os dias (todos os dias destas últimas e torturantes três semanas). Finto a obrigação e não saio. A chuva começou a cair! Estou cativa da falta de forças. É preciso, contudo, delinear novo plano diário: trivialidades? estudo? NÃO! Casa e cama! A única forma de recuperar alguma energia para investir posteriormente, a única forma de recuperar reminiscências de uma voz... da voz que me sugere o calor, a suavidade...enfim...voltemos ao relato da primeira acção.
Tempo de inverter o sentido de marcha.
Saio do autocarro, sou bafejada por alguns pingos de chuva, o meu corpo não responde, dorme a cada passada (ainda fazia eu planos de correr!). Nova paragem. Curta espera. Novo autocarro - a caminho da cedência! Entro. Sento-me. Um homem verborreico insiste em regurgitar cascatas de vocábulos, quais farpas sem gume, juras de morte aos "burocratas" e "por isso é que eles não levam o meu voto!"...faltam-me as energias para me rir. Mais adiante, num banco "de costas", viaja uma mulher cujo fácieis se transformará em pantufa - aquela em que o nariz quase toca no mento, sem o mínimo esforço, e a fenda labial se adivinha introvertida e embrulhada numa cordilheira de pregas cutâneas limitadas por desfiladeiros de rugas. Dói-me a cabeça. Nova mudança de autocarro...efectuada! Óptimo, já só faltam dez minutos para o meu descanso. O homem verborreico tem o mesmo destino que eu...há manhãs nubladas, chuvosas em que a chuva não vem só do céu!! Deixo de o ouvir!
Dou por mim a tirar os óculos no elevador...olho-me ao espelho, reconheço a luz deixada pela conversa de ontem à noite. Deito-me!
2 comentários:
O arco-íris não se faz apenas de Sol, mas também de chuva.
Um abraço :D
Deixo-te aqui um texto de Álvaro Campos
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...
O dia deu em chuvoso
Sabes, amiga, só ha dias chuvosos porque há dias de sol. Amar a chuva é querer e ter sol.
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